28.8.07

Hellen

Hellen
(1)Por la calle del desengaño
Esta mañana yo pasé
Con malegría otra vez
Por la calle del desengaño
Mi malegría emborraché
Dentro un vasito de jerez(2)
Cuando tú me hablas...



A eterna alusão nicotínica parecia inevitável, contemplara umas tantas vezes a apologia nos escritores subversivos e desconhecidos que tanto o agradavam que parecia necessário, inevitável começar pelo cigarro, era esta então a coisa mais acertada a fazer segundo cálculos próprios.
Pois bem, acertara o ponto de partida mas; após umas tantas tentativas pareceu-lhe que este início acabaria desconectado de todo o resto, então seria isso?Outra noite sem idéias?Após longo período acomodando-se inutilmente na posição incomoda, ajeitando minuciosamente o teclado sobre a perna direita (levantada e apoiada no móvel adaptado) corrigindo a posição da coluna, trazer para perto de si a caneca com o mate fumegante, acender o cigarro que deveria fazer parte da coisa toda, depois de tudo feito não saberia se expressar de forma exata?
Começam as indagações. Seria preciso adequar de maneira exata os fatos, aparar o supérfluo, concatenar corretamente as lembranças e as ações todas, era vital para que a coisa tivesse algum valor...Se ao menos tivesse uma resposta exata do e-mail naquele momento muitas das perguntas não seriam feitas, muitos buracos provavelmente não estariam surgindo assim, logo no início...Apagar o cigarro e se concentrar,precisava continuar, “concentre-se” murmura de si para si, um mantra para as horas mais duras, quando a mente quer mas falta-lhe material que fomente a demanda, outra empreitada sem sucesso, parecia que era isto...
Mas porque com mil raios esse assunto não vingava?Por que isso sempre assim?Já havia tentado em forma de versos, a experiência primeira com a escrita e sem sucesso, pensava se tratar do gênero escolhido uma vez que optara por não mais escrever poemas, era simplista demais e o gênero não lhe permitira experimentar muito salvo experiências lingüísticas, um gênero hermeticamente fechado, vago demais, a prosa parecia agora um desafio mais encantador, o formato ideal para transmitir sensações de forma plena e mais equilibrada, começava a desvendar os segredos de uma prosa satisfatória, algo para consumo próprio a priori com uma finalidade mais expansiva a longo prazo, mas que diabos, fugindo outra vez da coisa perdendo-se em divagações?
Talvez um epílogo, quem sabe?Ainda não experimentara essa fórmula, poderia ficar bom, quem sabe?Mas..que epílogo?E como faria a escolha?Uma música talvez...isso!Uma música de que gostasse, que transmitisse ainda um pouco de si como pretendia sempre nos textos...
Era isso, seria isso então...uma música...seleciona mentalmente um trecho e logo constata, havia naquilo os prols e os contras naturalmente, sempre a dialética, sempre isso...outro cigarro(a coisa parecia enfim ter começado a fluir...)Acende o cigarro, ajeita-se novamente na cadeira dura e confere a caneca do chá, há liquido suficiente para o final.Tragada funda...Ao epílogo pois...
Os pontos positivos estavam assim, ou pelo menos assim se lhes pareciam até aquele momento: agora ela dispõe de um exemplar do cd, conforme havia lido no e-mail, ela também havia gostado das músicas e seria fácil ouvi-la e entender o texto, era entretanto o entendimento a parte negativa da idéia uma vez que se tratava de uma música em espanhol, ela não dominava o idioma e mesmo ele, levava vez por outra um tropeço na língua...nada que comprometesse pois o trecho escolhido era coisa sabida, o som agradava e ele compreendia a letra, seria preciso então uma tradução, outro problema, suas traduções não eram literais, já havia passado por bons bocados nesses exercícios na faculdade, lembrava perfeitamente o zero que tirara no exercício de tradução do último exame de francês, havia traduzido “lês grises avenues” por avenidas sórdidas, parecia mais coerente com o contexto mas a professora queria saber das malditas avenidas sujas, pouco importava para ela o valor psicológico da sujeira na composição do autor.Pois bem, faria o epílogo, trataria de por um asterisco para a tradução ao término, estilo rodapé e explicaria se preciso fosse mais tarde que a tradução era mais conivente com o sentido e não literal, coisa de estudante metido a escritor, sem dúvidas mas no momento seria o ideal e isso encerraria a parte do epílogo, o assunto já começava a cansá-lo no mais...Vasculha os arquivos do micro, encontra a letra, coisa de quando se interessara pela tradução, ainda não era capaz de traduzir de ouvido, depois de exaustivas execuções a letra parecia fácil, a música escolhida chamava-se “Malegria” algo como má alegria mesmo e que ele traduzira para si como desânimo, a intenção do compositor era essa no fim das contas...cola o epílogo na página primeira e parte para o resto do processo, aquilo precisava sair hoje...
Então era tratar de exprimir as impressões com as palavras certas agora, já escolhera o gênero e constatara se tratar do formato ideal, escolhera um bom epílogo, estava satisfeito com o formato da coisa, era isso afinal, satisfação, o mesmo que intuitivamente e ainda propositalmente queria transmitir. Seria, no entanto capaz de despertar essa satisfação na interlocutora única desse discurso? Como as outras coisas que já havia feito, desenhos, quadrinhos, cds, tudo para ficar satisfeito com a satisfação da interlocutora, examina um pouco mais e percebe uma falha, há muita repetição da palavra “satisfação”, tornaria o discurso redundante e poderia fazê-lo perder o sentido, mas isso é coisa de sua cabeça, ela não verá o que não está escrito, esse diálogo de si com a coisa é algo subliminar, não vai sair escrevendo tudo o que pensa, só o que julgar mais apropriado, mais palpável a uma leitura pretensamente literária, pretensamente como o pretenso ato de escrever algo bom,mas que diabos, como se distrai, logo fica vagueando e deixa a coisa de lado, assim não vai, “concentração”, o mantra...
Mas afinal, porque esmerar-se tanto para agradar alguém?Partir e repartir a cabeça, fórmulas, experimentos, epílogos, para que tanto?
“Porque é alguém de quem gosto muito”, naturalmente. Percebe o algo nascendo dentro da coisa, percebe o quanto é difícil uma relação agradá-lo, como e quantas pessoas tentaram e sem sucesso caíram no esquecimento, quantas relações se desgastaram, o que faltou a elas?Não lhes faltou nada, é o que lhe parece, pessoas boas, umas até inteligentes, bem humoradas, não, não, isso não está direito, algo faltou a elas sim, e agora isso se tornara claro, faltou a elas o espírito do inusitado, faltou a elas a coragem de se aventurar no desconhecido, a perseverança de transpassar a espessa camada do constante mau humor, faltou a elas a sinceridade perversa, a verdade ácida contida no discurso foram essas coisas todas que estando em déficit nas outras pessoas tornaram as relações impossíveis...
E isso tudo havia encontrado nela, havia encontrado nela o outro complacente, o outro verdadeiro e era por isso gostava de agradar, a satisfação que o satisfaria, era isso que iria buscar, a coisa era a forma encontrada dessa vez, e feliz poderia terminar sem pressa e terminada a coisa haveria de bastar, se não a ela, bastaria a si pois a coisa tinha acontecido, era dentro da forma que estariam todas as respostas que impaciente se pusera a procurar no momento inicial, era ali que estariam todas as explicações e isso parecia agradá-lo, seria afinal um bom trabalho, aquilo se havia fechado sozinho, acabara por se concluir como Cortázar dissera em uma entrevista que lera, certos contos encerram ciclos de conhecimento de si e isso ajudava Cortázar a se compreender enquanto homem, enquanto ser, a coisa ajudara pois a compreender a essência daquela relação, havia enfim terminado.

(1)-“Pela estrada dos desenganos
Nesta manhã eu passei
Desanimado outra vez
Pela estrada dos desenganos
Meu desânimo embriaguei
Em um copinho de xerez
Quando você me fala ”...

(2)- xerez: espécie de vinho seco original da Espanha muito apreciado pelo povo da região da antiga Galícia atual território francês.

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