17.1.11

Desjejum com Borges

     Chovia gostoso hoje pela manhã e eu vinha devagar flanando pelas ruas de Santana porque gosto de caminhar, independente do tempo que esteja eu costumo caminhar, guarda-chuvas e sombrinhas formavam um mosaico inusitado pelas ruas, e eu, que não tenho medo de chuva, que não sou nem de papel, muito menos feito de açúcar, vinha caminhando lerdamente curtindo o frio da manhã e a garoa, o patrimônio da Babilônia.
     Cheguei na pensão perto das nove, fumei um cigarro, deixei umas coisas na geladeira e quando subi, dei de cara com um senhor sozinho com uma caneca vazia nas mãos, vendo o noticiário matinal. Este senhor está na pensão já há algum tempo, pelo que me consta, ele sofre de Alzheimer e mora com um filho, que o deixa só a maior parte do tempo, como isso aqui está se convertendo em asilo para dementes, achei que sua patologia é dos males o menor, perto do que tenho visto por aqui.
     Ocorre que este senhor tem uma semelhança gritante com o senhor Jorge Luís Borges, além de ser tão rude e chato como constam as descrições do velho bruxo; ver aquele senhor faminto e só naquela sala me deixou perturbado, afinal, não se tolera fome ao notá-la em ninguém, e em um senhor particularmente, definitivamente não caia bem.Com o pretexto de fazer um café para mim convidei o senhor Everaldo, que foi como ele me informou seu nome, a tomar comigo um desjejum que eu faria somente para ele pois já tinha comido na padaria alguns minutos atrás, mas sabia que ele sentia fome e que não aceitaria que eu fizesse algo somente para ele, o velho é durão, é um pé no saco aliás.
     Me informou que esperava pelo filho, e por isso a caneca em suas mãos, disse-me que ele tinha ido até a padaria mas a chuva o devia ter atrasado, notei que o velho não falava coisa com coisa, mas me diverti ao notar uma inventabilidade notável, provável sintoma do mal que lhe ia corroendo as memórias em seu passo invisível e letal. Disse ainda que tinha sido dono de um hotel em outros tempos, e que fora tão rico e tão bondoso que aproveitadores foram rapinando pouco a pouco seus bens fortuitamente até que se viu fulminado, tinha ido irremediavelmente a bancarrota, um burguês falido, explica muito sobre os preconceitos do coroa.
     Enquanto a água ia fervendo e eu separava em duas porções, uma para misturar o leite em pó, outra para o café eu ia ouvindo as memórias do velho e me lembrando outras ocasiões em que ele e eu havíamos nos desentendido, ele reclamava insistentemente do cheiro dos cigarros, já tinha manifestado incontáveis vezes seu desprezo pelas "pessoas de cor" e pelos "nortistas" estava tão convencido da inferioridade das pessoas que se sentia a vontade para exercer seu preconceito sem ressalvas, o que eu avaliava muito saudável para um senhor que decididamente está com um pé enfiado na cova e não deve satisfação de sua vida pra ninguém, no entanto, a figura frágil que eu tinha encontrado naquela sala ainda a alguns minutos atrás deixava claro as fraquezas e angustias de uma fase a que todos estamos condenados inapelavelmente, o velho tava tão fodido quanto eu estaria caso chegasse onde ele havia chegado então não caberia a mim dizer isso ou aquilo sobre o que ele pensava ou dizia, cabia a mim respeitar a insensatez deste senhor, e, ainda que não tivesse a obrigação de alimentar alguém que se sentia superior a mim por conta da pouca pigmentação de sua cutis, ou que vivesse para se queixar que meu cigarro o incomodava, cabia respeitar alguém que, tendo vivido em outros tempos, trazia consigo a marca indelével de outras formas de conceber a realidade.
     Comeu e bebeu sem se ater ao fato de eu não ter sequer tocado em nada, não reclamou que eu fumasse, e naquele momento, ali, naquela garagem convertida em cozinha, estava feliz que pudesse participar de um desjejum com Borges, e  sentia uma empatia e uma compaixão tamanha, que era como se o coroa e eu nos conhecessemos desde outras eras e, se eu acreditasse nessas baboseiras pseudo metafísicas e em toda caralhada esotérica, poderia jurar que de fato estava diante do mestre, ou ainda, que o tiozão e eu já tivéssemos convivido de alguma forma em outras existências...
     Não agradeceu e eu não esperava por isso de qualquer forma, me disse que eu era um rapaz direito e por isso deveria tirar meus brincos que isso não era coisa pra homens de bem, que jamais perdoaria o filho (que não havia ainda retornado da padaria mesmo tendo cessado a chuva, e ele, pelo jeito, sequer se lembrava disso) caso ele resolvesse fazer uma presepada dessas e tudo o mais pedi a ele que tomasse cuidado com as escadas que estavam molhadas e ele poderia escorregar, ele disse que era velho e não cego, então notei que não era tão perfeito quanto Borges.

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