20.11.10

Dedicado a Orlando Boldrin grande bardo do nosso rico e belo sertão.




O causo do danado do cigarro



Eu tenho cá na memória um causo muito interessante, que, se não educa, pelo menos não corrompe; um causo meu mesmo, de engenho singelo, mas que eu queria compartilhar de coração, é o causo de como eu larguei o danado do cigarro, a chupeta do tinhoso, o pirulito do cancro que eu, de tanto pelejar, consegui largar.

Eu vinha passando uns dias na casa da minha noiva, na cidade de São Paulo, e como eu tinha ido só com o dinheiro da volta (e para uns mimos que afinal era a casa da minha noiva) não tava me sobrando nem o dinheiro pra uma pinga, e já que eu toquei nesse assunto, até pra tomar pinga em São Paulo a gente tem que pegar um metrô, e desse jeito é que não ia me sobrar nenhum dinheiro mesmo.

Essa lei aí do governo do estado ainda não tinha vigorado, e nem era isso que tava me preocupando, é que dureza econômica põe a gente duro de coração também, quem já viveu junto de outro só com o dinheiro das contas sabe do que eu tô falando, a gente se enerva por pouca coisa, que o problema não é o outro, mas sim os vencimentos, as promissórias, toda aquela história, e quando minha noiva chegava do trabalho, cansada da loucura daquelas ruas, eu sem ter o que fazer a destratava, depois ficava arrependido, fazendo cara de sonso, mas mesmo quando a gente ama e perdoa, quando a mágoa dói na alma mesmo, nunca fica o dito pelo não dito, e eu ficava me remoendo ensopado de remorsos e foi assim, de besteira em besteira que eu percebi que eu precisava muito, e logo, deixar dessas tolices e percebi que dentre todas, a maior das minhas asneiras era aquela que vinha num pacote com mais dezenove, tinha filtro e quando eu acendia, relaxava, mas era o mesma coisa que eu pegar e jogar o meu dinheiro na privada.

Decidi que quando viesse embora eu ia deixar esse vício maldito, porque para quem não sabe, fumar não é costume, é doença, e doença ruim, quem fuma não consegue parar duma vez porque sempre tem alguma coisa, algum costume, algum lugar que faz a gente lembrar, antigamente era nessa hora que eu gostava de pitar, no meio de uma prosa gostosa, uma varanda no fim da tarde modorrenta, uma rede um café e o dito cujo...Mas, fiando na paciência dos meus nervos o já citado desejo, transformei a minha história, minha vida não é feita mais de “antigamentes”, hoje eu prefiro os “daqui pra frentes”.

Mas essa prosa tá muito séria, tá parecendo conversa de médico, o senhor veja se não me vai voltar a fumar pra não deixar muito cedo nesta terra uma viúva pelo amor de Deus seu fulano, não, meu causo era pra ser diferente e, agora que eu venho falando e falando achava necessário falar também do início, antes da gente falar de como eu larguei, é preciso saber de como eu me apeguei, porque depois que eu me propus a largar esse vício, esse costume maligno, eu cá com os meus botões me pus a matutar sobre essa minha condição, afinal, tudo que morre tem que nascer um dia, feito os bichos, criação. E se eu comecei o causo já pelo fim da história, foi só pra afinar minha prosa, extravagâncias de escritor que a gente vai pegando costume, de acompanhar as leituras que vai fazendo durante o sempre caminhar para frente que é o sentido dessa vida.

Eu nasci e fui criado numa cidade pequena, mas pequena de dar pena, saí de lá já crescido, com desculpa de estudar, minha cidade fica na beirada do Tietê, onde o rio é muito limpo, terra que antigamente atraía índio bravo, onde a peãozada caçava suas esposas no laço, tinha praias muito limpas, de areia muito alva. Minha infância foi saudável, pesquei tuvira no brejo com peneira, comi doce de leite raspado no tacho, e por isso tive caganeira, subi em pé de manga, subi em goiabeira, buli com menina arteira, tomei banho em cachoeira, velei defunto na sala de casa, tirei minhoca do chão do quintal, roubei jabuticaba de roça, tomei tiro de espingarda de sal, e no meio de tudo isso, eu consigo me lembrar, melhor dizendo eu sempre consigo me lembrar, no meio das lembranças guardadas, do fumo, da palha, da fumaça.

O que eu quero dizer, mormente estou pretendendo, é mostrar que o bendito cigarro está muito enraizado, está atolado até o talo, nos costumes de toda gente, mas como esse causo é a meu respeito, deixemos de lado essas coisas, que isso é coisa pra pesquisador, antropólogo, sociólogo, qualquer coisa terminada em ólogo, eu quero é falar de mim, de como me apaixonei por um pedaço de bosta enrolado num papel com uma espuma esquisita numa das pontas, que mata mais cruelmente que pernambucano quando descobre que é corno, então você me desculpe mas eu vou mudar o rumo dessa prosa.

Das lembranças mais fortes que eu trago da minha infância, estão os cheiros, a relação que a gente tem com os aromas é muito forte, quem nunca se lembrou de alguém ao sentir um perfume na rua pode dizer que estou besta, mas eu acho que esse não é o caso e assim sendo, vamos de novo voltar ao meu causo.

Eu me lembro que bem cedo, muito antes do sol ter nascido, minha avó já aprontava o café, eu me lembro do cheiro e do chiado da carne frita que era para a marmita e o outro cheiro que eu lembro é o cheiro do pito. Meu avô que preparava, com cuidados de quem conhece a arte, primeiro ele aparava e acertava o tamanho da palha, depois picava o fumo de corda, com o mesmo canivete que usava para pelar laranja pra mim, o fumo em corda tinha um cheiro muito bom, mas quando ele acendia o cigarro o fumo perdia a graça, eu nunca consegui entender pra onde ia o cheiro bom depois que meu avô soltava a tragada que enchia a cozinha com o cheiro fedido de sua fumaça.

Eu me iniciei nisso quando comecei a trabalhar na roça, minha família era muito simples, mas nunca me deixou faltar nada, se eu não quisesse, não precisaria trabalhar na lida, mas eu queria. Eu queria ter meu próprio dinheiro, poder comprar as minhas coisas, ir ao cinema, poder convidar as moças, e, principalmente, porque respeitava os esforços dos meus, e aqui cabe outro parêntese, esse respeito foi conquistado à moda antiga, a guascadas do relho, do tempo que meu avô era tropeiro, quando umas boas bordoadas faziam parte da educação.

Então eu estava iniciado, o cigarro e a pinga aliviavam a lida, não era fácil conseguir conforto no eito, seguindo exemplo dos mais velhos, veteranos na guerra contra o pomar, eu passei desde moço, a beber e a fumar.

Bem se diz que Deus escreve certo por linhas tortas, quando ia eu imaginar que minha avó tendo descoberto minhas safadezas, invés de ralhar me fez troça, me fez perceber, envergonhado, que eu, por mais que me achasse, não era homem feito, nem pra beber, nem pra fumar, nem para a roça, depois de umas boas da velha abandonei o costume e voltei a estudar, a velhacaria, logo vi, com a idade vai ganhando vultos de sabedoria, minha querida e sábia avó me fez perceber, que eu tinha era que estudar, dar continuidade ao meu nome, crescer e me fazer homem, antes de me perder, era preciso primeiro eu me achar.

Depois disso a faculdade, nesse entremeio muito ocorreu, nada digno de registro, eu miudinho espichei em tamanho e sabedoria, e foi assim que um diabo de idéia subiu e se aboletou no meu telhado, diabo de peste de idéia apinhada, que eu tinha que sair de casa e vir estudar numa cidade maior e foi assim que vim dar nestas paragens, e foi nas festas dessa primeira mocidade que eu me reencontrei com o danado.

Reatei os laços com a indecência do vício, fiz votos e completamos bodas, eu achando que aquilo era bonito, e foi aí que encontrei a minha noiva, entre idas e vindas e voltas que essa Terra dá, eu que era um corpo desgarrado da alma, uma carcaça vazia de si própria, em se tratando de alguns propósitos, ao pé daquela moça me vi cativo, repare que é sempre isso, em mim, naquele lá e no outro, é preciso um rabo de saia pra por a cabeça da gente no lugar, primeiro bagunça, faz o corpo ebulir, faz o sangue ferver dentro das veias e conforme o sentimento se amiúda vai serenando, vai fazendo uma limpeza na vida da gente, organizando; comigo não foi diferente, aquela moça que conheci e eu afunilamos nossas vidas e decidimos fazer juntos um nosso mesmo caminho e foi assim que comecei a perceber que era preciso corrigir alguns desvios.

E dessa vez larguei a danação em definitivo, a mim importa muito reaver esse meu tempo perdido, agora começa o calvário, é a minha expiação, quando me bate a vontade do danado é como uma sede, uma bruta sede que não vê fim, é um querer de nunca acabar, um oco dolorido dentro do ser, que a coisa é tão ruim, o diabo do vício é tão danado que quando bate a vontade a gente não toma ciência de nada, a gente procura desesperado onde encontrar um maldito de um cigarro.

Os primeiros dias foram de uma tristeza que não conhecia fim , quando batia a vontade, era como uma cegueira, era o mesmo desespero de estar dentro de ônibus quando vem a caganeira, mas com muita vontade e o propósito firmado, eu fui teimando e teimando, teimosia de burro cismado e foi assim que me livrei do danado do cigarro.

Esse causo é sobre mim, de como me apaixonei e como me livrei de uma coisa que não me fazia bem, nem a mim, nem a ninguém, mas é também, a sua maneira, uma história sobre dependência, que não escolhe idade, nem cor, nem profissão, o vício desconhece diferenças, pretendi mostrar com esse causo que a vida é como uma boiada sendo tangida rumo à invernada, é preciso pulso para não desgovernar, em se tratando de querer, é sempre possível largar, eu pude, você pode, sempre poderá. Fica o exemplo pra quem quiser tentar, fácil eu adianto que não é, nunca será, mas tudo que é muito fácil nessa vida, perde logo sua graça.

Companheiros eu preciso me deitar, amanhã acordo cedo, é dia de trabalhar, foi bom prosear com vocês, é sempre bom poder falar, pros patrícios fica um abraço, pros demais fica o lembrete, cada dia traz consigo uma nova oportunidade, aquele que vê no alvorecer a dádiva, é sábio, conhecedor de verdades.

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