29.11.10

Dolores

 “Davi cingiu a espada sobre a armadura e procurou em vão andar, pois não estava acostumado àquilo. Então disse Davi a Saul: Não posso andar com isto, pois não estou acostumado. E Davi tirou aquilo de sobre si”.


1 Samuel 17:39



“Ao sul do Equador meu peito arde de paixão e minha garganta de cigarros paraguaios”, pensei num graffiti em duas ou três cores com estes dizeres, mas, bobagem, não tenho mais idade para isso, o jeito é fingir que ainda posso e realizar a arte a minha maneira, um vândalo imaginário, um artista hipotético...

Estamos indo ao hospital, Davi e eu, para o retorno dele ao neuropediatra; eu trabalho em um abrigo e as crianças de lá têm sérios problemas.

Gosto de me afundar na merda alheia porque isso me alegra, me sinto útil e ao mesmo tempo percebo que meus problemas pessoais não são nada diante das tormentas que algumas pessoas tem que enfrentar... Não é que eu seja sádico, um lunático pervertido, mas acho que só se pode perceber que falta de dinheiro não é o fim do mundo quando você se dá conta que não precisa da ajuda de ninguém para limpar seu próprio rabo; e você percebe que viver em uma espelunca é infinitas vezes superior a um catre de papelão a céu aberto quando a metereologia prevê uma noite de 2º C.

Não é que eu seja altruísta também, definitivamente solidariedade não é o que me motiva, simplesmente tento fazer alguma coisa que me motive já que minha própria vida é um amontoado de pequenas frustrações, nada de grava, mas sim aquele tipo de coisa que vai minando as forças aos poucos, daquelas coisas que vão pouco a pouco te fazendo perder o interesse, a gana pela batalha.

Compadre, do meu lado há um menino de seis anos com as duas perna imobilizadas, a um mês ele passa o dia todo na posição de frango assado, o dia todo imóvel. Em suas costas há escaras do tamanho da minha mão, suas virilhas estão costuradas desde o períneo até o púbis e mesmo assim ele sorri pra mim com muita franqueza quando tenho que levantá-lo para que minha companheira possa trocar sua fralda, aquilo deve doer como se o próprio Cão lhe aferroasse as carnes com ferros em brasa mas ele sorri e me diz com a voz de criança cuja preocupação mais salutar é a Vila Sésamo:

- Tio, arruma a antena da televisão pra eu ver o Garibaldo!

E eu, reclamando da vida.



(Julho de 2010)

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