29.11.10

Saiba que

     Ser gauche não é assim tão fácil quanto sugera a poética do gênio - e ainda que não sugira, há sempre os que se deixam levar - é preciso gana, é preciso cana, é preciso cânhamo porque, eu te digo, em uma cidade com vinte e dois milhões de habitantes, não se acham amigos que lêem Horácio nem porra nenhuma.


On the Road só caiu no papel porque ali haviam amigos, patrocínio e ninguém tinha que levantar às cinco e encarar o ônibus bombando.

Dia desses fui até a biblioteca do Parque da Juventude, antiga Casa de Detenção de São Paulo, vulgo Carandiru, as pessoas me olhavam na rua como se eu fosse um mendigo porque vestia roupas amarrotadas e desbotadas e um gorro desses que normalmente se usa para dormir, mas eu ia alheio a todos, desde que não sentisse frio, pouco me importava para o aspecto que minha roupa tinha e a impressão que elas causavam nas pessoas, cagava para todos.

Renovei o empréstimo de três livros técnicos, do projeto de mestrado que eu nunca comecei a escrever, resolvi de improviso escolher o livro de algum notório vadio somente para tentar me divertir com o estilo dos indigentes que escrevem, eu, um ghost writter sem obra, sem editora, sem dinheiro...

Passei pela ETEC, deixei na fotocopiadora os livros sobre o projeto que eu provavelmente nunca escreverei. No caminho de volta para a pensão paro para falar com o cara que cuida dos carros na rua, um dia pedi a ele um cigarro e depois disso passamos a nos falar, ele é muito observador, sabe quem é o dono de cada automóvel, sabe onde trabalham e seus nomes, conta boas piadas, mais um sujeito que adquiriu equilíbrio ao caminhar a vida toda na corda bamba da falta de grana, um miliciano do conflito diário do pobre contra a falta de emprego.

Abri pela primeira vez a janela do meu quarto essa semana e já é sexta-feira, aproveito que no meu quarto não há nenhum dos meus companheiros, acendo um cigarro, me deito em minha cama e começo a leitura do livro de crônicas do cubano indecente, falta de grana acaba atrofiando os escrúpulos, se me ocorrer, que pelo menos eu consiga desenvolver uma narrativa com a mesma intensidade deste cretino que come rins humanos.

                                                                                                               (Setembro de 2010)

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